delírios e outros bichos

A melhor receita para um mundo em mudança


(foto: Acritica.com)

Porque ninguém vive só de comida…

Essa é a época de fechar nosso próprio balanço (balanço da nossa vida, sabe?), rever as atitudes, repensar as ideias e traçar planos. Mais do que isso, essa é a época em que sempre pensamos em mudança… mudança que não vem só com a troca do calendário de cima da mesa, mas aquela que a gente planta dentro de nós mesmos, todo final de ano. É certo que nem sempre damos conta de colocar as mudanças desejadas em prática no ano que começa, mas pra mim, sempre que plantamos esse desejo dentro de nós já demos o primeiro (e talvez mais difícil) passo para que elas se realizem.

O texto é do site Slow Food Brasil, da bióloga Marina Vianna Ferreira e vale a pena parar cinco minutinhos para lê-lo.

A melhor receita para um mundo em mudança

Todo cozinheiro já passou pela situação de se deparar com a falta de um ingrediente bem na hora de preparar um prato para os convidados. Quem nunca trocou manteiga por óleo (ou vice-versa) no preparo de um bolo? Ou substituiu creme de leite por um leite engrossado? Atire a primeira pedra quem jamais teve que dar um jeitinho de última hora para manter as características essenciais do prato a ser apresentado.

Eu mesma aprendi a fazer quiches quando era pequena. É provável que eu tenha seguido alguma receita nas primeiras vezes que preparei. Desde então, é muito frequente um amigo ou familiar me pedir um quiche, ou a receita dele. Muitas vezes, ao longo desses anos, abri a dispensa e notei a falta de algum ingrediente… o que logo deixou de ser problema. Percebi que quando falta sal, posso acrescentar um pouco mais de queijo ralado. Notei que quando o recheio é de vegetais que soltam muito líquido, melhor usar um ovo a mais. E se não dá pra fazer com creme de leite, posso engrossar um pouco de leite com farinha de trigo. Acho que hoje eu nem lembraria a receita original.  E nem por isso meus quiches deixaram de ser quiches. Hoje entendo que quando se pergunta a receita a um cozinheiro e ele diz que não sabe, é porque ele muito possivelmente não saiba e não por que não queira revelar a receita.

Situação semelhante ocorre com agricultores e pescadores tradicionais em seus ofícios. Se em um ano a safra da tainha não está boa, o pescador pode usar outra rede, buscar diferentes pontos de pesca, pegar outro peixe e até mesmo arranjar um “bico” na construção civil até a próxima safra. Mesmo com esses ajustes, ele vai continuar sendo um pescador artesanal.

Da mesma forma, o modo de salgar um peixe para a conservação… Se o tempo está um pouco úmido, é necessário mais sal. Se o sol está a pino, pode diminuir um pouco, mas se está chovendo, a salga pode ser substituída pela defumação. Pequenas mudanças e adaptações de técnicas se fazem presentes no dia-a-dia de todos nós, de modo que, essencialmente, não deixamos de ser o que somos. Mas esqueçamos por um momento quiches e pescadores.

Nos tempos recentes, está se tornando mais do que comum abrir o jornal e deparar-se com alguma notícia sobre enchentes, terremotos, tsunamis, redução de estoques pesqueiros, contaminação da água (quando não a falta dela), poluição, destruição da camada de ozônio… Colocamos todos esses problemas num pacote que chamamos de mudanças climáticas e a elas atribuímos a culpa de tantas mazelas sociais e ambientais. Esses temas passaram a atrair atenção de governantes, gestores, sociedade civil, pesquisadores e educadores e agora são alvo de debates, numa cúpula internacional ou num boteco na zona rural.

Todos esses impactos atingem, em algum grau, a produção alimentar agrícola e pesqueira do mundo, tendo reflexos na segurança alimentar e bem estar humano. No momento em que a nossa sociedade passou a sentir-se ameaçada pela instabilidade na disponibilidade de recursos, tais como petróleo e alimentos, tivemos um boom de técnicas e estratégias que prometiam poupar recursos para as gerações futuras.  O dilema entre o uso dos recursos essenciais à vida humana e sua conservação trouxe à tona muitos discursos sobre como manter a capacidade do mundo em nos abastecer. Com isso, inúmeras regras surgiram com o propósito de regular o uso dos recursos, inclusive algumas que cercearam a capacidade de realizar os ajustes necessários às dinâmicas ambientais. Em nome de um “futuro seguro”, agora não se pode caçar, a pesca é restrita a épocas e territórios e não se pode fazer um roçado com queima. A produção alimentar transitou de um sistema de conhecimento e interação com água, solo e biodiversidade para um sistema de controle de variáveis duvidosamente “naturais”. Em nome deste “futuro seguro”, a palavra mágica é “sustentabilidade”. E então, parece que é só aplicar a receita da tal sustentabilidade que nossos problemas estarão resolvidos.

No entanto, mesmo com tantas leis e restrições, os problemas ambientais não acabam e estão se associando a problemas sociais, econômicos e culturais, que parecem não ter fim. Ocorre que essas supostas soluções foram criadas com base no fundamento de que existiria um estado de equilíbrio no mundo, permitindo a conciliação entre o uso desejado e a conservação dos recursos, como se as variáveis ambientais se comportassem sempre da mesma forma.

Contudo, no contexto de tantas mudanças que vivemos hoje, essa noção de sustentabilidade – e renovação – se mostra muito estática, por não considerar as mudanças nos valores e necessidades humanas e nos serviços ecossistêmicos. Ao invés de compreender o funcionamento dos sistemas ecológicos e a eles adaptar-se, as sociedades atuais criam apenas uma maneira de lidar com os sistemas e esperam que eles se comportem sempre da mesma maneira. É como querer manter estática a lista de itens presentes na nossa geladeira, sem saber se eles estarão disponíveis no supermercado. Ou querer que eles estejam disponíveis nas distribuidoras, sem conhecer sua produtividade ou sazonalidade. E assim fechamos os olhos para as origens de nossos problemas e para os ciclos dos sistemas em que estamos inseridos. É mais fácil criar regras e fórmulas e jogar esse modo de operar no sistema educacional, do que promover um pensamento sistêmico em cidadãos capazes de entender e intervir no mundo de forma racional.

Será que cozinheiros, produtores, pescadores, agricultores e comunidades tradicionais têm algo a ensinar aos gestores e governantes que se dedicam à busca de soluções para tantos problemas? Sim, cozinheiros, produtores e comunidades tradicionais têm sua história arraigada no aprender fazendo e no desenvolvimento da capacidade de interpretar os resultados das próprias ações, afinando assim a capacidade de adaptação para manter as características essenciais de suas respectivas formas de sobrevivência e reprodução cultural. Se os cozinheiros cozinham com o que têm, os pescadores pescam com a rede que têm. E se não tem rede, vai uma vara; se não tem vara, inventa-se uma armadilha, um cerco, um covo, com galhos, fibras naturais e até mesmo, com garrafas PET reutilizadas.

A receita então, tanto numa cozinha como num órgão de governança internacional, é não seguir uma receita. O sucesso é entender os recursos e processos que levam aos resultados, é interpretar os fatos, é considerar as possíveis mudanças e adaptar-se a elas. É manter as tradições sem estar fechado às inovações, abrindo-se a um aprendizado constante do mundo ao nosso entorno.

* Marina Vianna Ferreira ( marina.vf@uol.com.br) é bióloga, com mestrado e doutorado em Ecologia e Recursos Naturais. Sua pesquisa é em resiliência de sistemas alimentares de comunidades locais. É uma das autoras do livro Cozinha Caiçara: encontro de histórias e ambientes. Atualmente desenvolve projetos nas áreas de educação, alimentação escolar e apoio às cadeias produtivas.

 

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