Um cenário tipicamente outonal domina a paisagem. As folhas cobrem o chão, o sol vem ao seu turno cansado por ter brilhado nos dias longos de verão, árvores avermelhadas e amareladas embelezam a flora local. Os manequins se preparam para o frio, desfilando roupas invernais nas vitrines, enquanto muitos já se valem de seus casacos mais fofos, iguais ao boneco “michelin”.
As mudanças exteriores são sentidas nos ânimos das pessoas, e apesar da valentia de alguns o recolhimento vira a regra, os ventos e a chuva nos expulsam para dentro de casa. Surpreendo-me ao descobrir em minha casa um novo refúgio favorito. Esse canto acolhedor, que não me era mais familiar no Brasil, é onde agora reproduzo os sabores que aprendi a amar em minha infância. E foi a saudade dessa comida amorosa que me aproximou da cozinha.
Ao comparar nossos hábitos com o comer dos holandeses percebi a importância cultural da comida na vida do brasileiro. Qualquer ocasião, de uma simples visita a um casamento, a gulodice domina todos os rituais sociais. O alimento se conecta diretamente ao coração e trazemos na memória delícias preparadas pelos pais, avós ou alguém bem querido.
Assim é para mim. Encontro em minhas reminiscências dezenas de mulheres em uma cozinha de fazenda, preparando pamonha. Eu pequena olhando panelas gigantes e observando o mistério daquele líquido amarelado, que era milho, mas de repente se convertia em minha sobremesa favorita. Conseguia às vezes dar o nó nas sacolas de palha com um barbante. Lembro-me também de ver a vovó preparando biscoito de queijo e seu feijãozinho ainda é para mim o mais saboroso que provei. E para minha sorte a outra vozinha também tinha seus quitutes. Seu vatapá era prato famoso, mas gostava mesmo das coxinhas que preparávamos juntas, da paçoca que ela fazia, essa doce, e até do macarrão nissin com molho avermelhado, delicioso só por ser feito por ela. Também não me esqueço das fugas que fazia com minha irmã para provar as pizzas do Seu João em nossa pizzaria. Ele também preparava gemada como uma batedeira, pronta em poucos minutos, depois nos assustava virando o prato de cabeça para baixo. Também aproveitávamos para furtar muito refri e guardamos várias obturações de lembrança daqueles tempos. A comilança das festas juninas também é memorável: a canjica, os docinhos, o churrasquinho, e também a alegria em receber um correio elegante, ao que ainda fosse 1 correio elegante. Havia também o bolinho de chuva da Dona Anastácia, e eu vibrava quando ela chegava com aquele prato de bolinhos perfeitamente redondos e açucarados, não é melhor bolinho imaginário do mundo?
Não obstante, quando adulta, ao me deparar com as caçarolas, o encanto havia desaparecido. Sozinha em minha cozinha minúscula não havia qualquer inspiração. Anos e anos depois, já em São Paulo fui aprender a cozinhar na escola. O chef Carlos Ribeiro ministra cursos fantásticos no Na Cozinha, e a partir dali algo começou a mudar. As lições gourmet despertaram a vontade de preparar o delicioso e o belo, e descobrimos a importância do “mise-em-place”. Mas a lida com a cozinha estava ainda longe da familiaridade para mim, foi pois que feri levemente meu gentil professor com aquela faca enorme de 7 polegadas, e ele somente me revelou o ocorrido ao final do curso, para que eu não desistisse.
Já na Holanda surgiu grande necessidade de trazer novamente aqueles gostinhos que ficaram na terra natal. O primeiro desafio é ter que lidar com a ausência das matérias primas que abundam no Brasil. Fui encontrando aos poucos um item ali, outro aqui, até porque não podemos sempre ir na lojinha de produtos brasileiros para comprar um pacote de polvilho por quase 4 euros. Encontro o leite condensado na seção de produtos importados, apesar de ser do norte da Holanda, de Friesland. A salsicha defumada que se chama rookworst faz as vezes de lingüiça de feijão.
Começou a surgir uma satisfação com o exercício culinário, para mim novo. Aprender a fazer o ponto de brigadeiro, assar um bolinho, fazer pudim, percebi o grande fascínio que essas comidas exercem sobre mim, admirava-me preparar os ingredientes e me deslumbrava com a metamorfose da massa.
Minhas referências para muitas receitas vêm do site das Rainhas do lar e do blog Mixirica, bem como do livro Quentes e Frios, da autora Maria Stella Libanio. No fim de semana, por exemplo, inspirei-me com uma receita do site das “Rainhas” de curau de milho, no qual aproveitamos o bagaço para fazer bolo de milharina. Comprei então um pacote com dois milhinhos de 2,50 euros e ao provar o resultado tamanha foi minha alegria em me sentir transportada para as adoráveis lembranças que meu super amigo milho me desperta.
Ao preparar os pratos corriqueiros da nossa cozinha, como o arroz e o feijão, percebi que acumulara várias sugestões das mais queridas figuras. Meu feijão tem o toque de manteiga da Lelê, um monte de alho como o feijãozinho da Adri, um caldo consistente como o da vovó Tina e às vezes umas linguicinhas tais quais as da vó Maria. Também cozinho sopinhas pensando na minha amiga Manfra, que um dia me preparou uma sopa para me trazer de volta à vida após um dia muito estressante. Cozinho os legumes ao vapor igual à tia Dag e faço uma salada de tomates assim como ela para os guris. Preparo aquele cachorro quente com molho saboroso tal qual a tia Binha e uso a receita de tahine com mel e os produtos natureba da tia Dani.
Minha cozinha então fica cheia, quase não consigo me mover com essa gente toda trazendo sua alquimia para o fundo da minha panela, e jamais me sinto só. Esses detalhes que não se encontram em livros tornam a comida de cada um ainda mais única e especial. A vida pode ser mais doce e temperada, e até que caiam todas as folhas e renasçam verdinhas daqui ha duas estações abastecemo-nos desse alimento que nutre a alma.
Da maior mestre ainda não falei. Mas ela é sem dúvida a grande referência que tenho para a lida com as colheres de pau. Ela tem dicas para tudo e um jeito só seu de preparar a comida. A torta de banana e o bife bem solado eram customizados para mim e tinham um sabor que ainda reverbera nas minhas papilas degustativas. Ela preparava um incrível manjar de coco com ameixas e aqueles docinhos de festa perfeitos, jamais vindos da latinha pronta. Fico triste quando me lembro de reclamar com ela se o leite tinha nata demais ou se o feijão não estava amassadinho, coisas bobas de criança que não sabia o tesouro que tinha. Havia um algo há mais saindo daquele forno e fogão e não há quem possa repetir as receitas. Até a pipoca feita na panela, combinada com amendoim torrado, consumidos em sacos de papel do mercado Jumbo tinham um sabor incrível, quando sentávamos lado a lado para assistir TV. Na minha humildade de cozinheira iniciante vou tentando aos poucos decifrar a arte da maior chef que já conheci.
Conversamos muito nesses momentos. Ela me avisa quando devo colocar mais sal ou se preciso acrescentar um pouco mais de água, e também me dá idéias do que fazer quando o prato não sai conforme o programado. Algo muito inesperado então acontece. Eu ganho uma confiança que nunca tive enquanto estava ao fogão, e antes de terminar o preparo do alimento já sei que será saboroso.
Acabo cozinhando muito com a minha mãe. Eu aqui, bem longe do Brasil e ela na outra dimensão da vida sopra em brisas suaves o seu conhecimento. Tudo que não tive tempo de dizer-lhe é preenchido pela nossa comunicação secreta. O carinho enorme no preparo dos pratos, pensando nas pessoas queridas do Brasil e nos amados destinatários da comida é sempre uma grande homenagem a ela, uma maneira de agradecer por todos os “gagais” que me fizeram crescer e me transformaram em um ser melhor, e finalmente capaz de dar aos filhotes um gostinho do inesquecível amor de mãe em forma de comida. Nesses momentos não há tristeza, não há nada mais que uma saudade muito doce, cheia daquele aroma de baunilha que perfuma o forno.
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O texto acima é da Tati Mota e ao lê-lo não pude deixar de me emocionar – pela história que ele conta, pelas lembranças dela (que se confundiram um pouco com as minhas … uma parada muito louca, difícil de explicar)…
Seu e-mail, tão doce quanto a receita que ele continha, encheu meu coração daquele quentinho gostoso, sabe? Aquele sentimento tão aconchegante que vem depois de um pequeno aperto no coração, que por sua vez precede aquele momento em que nos faltam as palavras. No Rainhas vivi muitos desses momentos e sei muito bem o quanto eles são preciosos e tive de novo a certeza que eles precisam mesmo ser compartilhados, sempre.
Então, diga Tati…
Bem, eu escrevi faz um tempo porque havia publicado um texto no qual mencionava o site das rainhas. Era sobre o descobrimento da cozinha para mim, depois de ter me mudado para o exterior. Acontece que após exatamente 2 meses no país novo eu perdi minha mãe, que além de ser minha querida mamãe era a referência para mim na cozinha. Aconteceu tão de repente que não pude falar com ela nem me despedir. Assim foi que a cozinha surgiu para mim como um ligação com a nossa cultura, mas principalmente com ela. Vale sempre dizer que é muito bom estar em contato com nossos queridos, estejam eles do outro lado da rua ou em outro país.
Depois que escrevi esse texto, que foi publicado no site Digestivo Cultural minha irmã resolveu me mandar o maior tesouro que minha mãe havia deixado. Ela enviou para mim as receitinhas que ela usava por todos os anos em que me entendo por gente. O jeito que ela preparava suas especialidades vai ficar na memória, mas eu lembro desses caderninhos desde pequena, certamente foram para ela uma referência.
Havia preparado para o site das rainhas uma receita que era uma das minhas favoritas. Encontrei no caderno mais antigo uma receita meio diferente dessa torta de banana e ela foi alegremente aprovada pelos comensais daqui de casa. Parece uma mistura de todas as tortas de banana que existiam no site das Rainhas. Não sei se existe no blog Pimenta qualquer coisa que seja parecida com o envio das comadres, mas enfim, o bolo foi feito, as fotos também, então envio nem que seja para que vocês possam curtir.
Fiz fotos da receitinha, mas no meu caso sempre uso menos ovos. Acho que antigamente as receitas tinham muitos, muitos ovos. No mais, segui os passos e deu muito certo.
Bem, gostaria de agradecer por ter recebido tanta ternura através do Rainhas do Lar. Um dia estava aqui no outono da Holanda e abri um vídeo sobre uma vendinha em Minas, eu me transportei imediatamente para lá, e daí veio um chorinho muito doce de saudade.
Super abraços,
Tati.
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